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25.12.12

Travessia

Escorrendo memórias filamentosas de longas raízes-umbigo desde o chão daqui até esplanada além, vazando pra fora do plano.

Água viva inundando tudo. Hoje de mar e cascata, estrelas e pedras-corais. 

Do passado, lágrimas derramadas voltaram até antes de brotar e transmutaram em outra substância, caudalosa, quente e murmurante, adubando o que virá.

O chão sob o pé direito bambeia e corre pro centro em diagonal vertiginosa, o esquerdo gira em espiral sem fim. É agora: vomito ou voo. No lugar em que eu era aguardada, os dados escapam de suas mãos e rolam na sarjeta. Não chego, mas a sorte está do meu lado.

Na hora que acaba é quando explodem os fogos.


20.12.12

Colóquio

'Deus é mais.

Só deus sabe a minha hora.

São frases legais, não tô dramatizando'.

Disse, e ficamos pensando.


17.12.12

Clube do livro

Betoven volta e meia traz revistas cuidadosamente selecionadas com exatamente o que eu preciso perceber. 
Algumas vezes Ísquilo se fez de entregador. Com o tempo, gostou da brincadeira e agora também recorta sua própria seleção de periódicos, sempre rabiscados de figuras e letras desenhadas.
Aula de recepção das coisas que não se vê.
Nessa tarde, acomodados no jardim da Lebre de Março, Betoven insiste pra que eu fique com o livro que ele anda lendo, uma viagem fantástica. Não aceito, onde já se viu tirar história no meio do acontecido da mão de leitor? Haja karma, sai de mim. Digo que quando ele terminar e me desculpo adicionando um cordel sobre o lendário Pedro Malazarte na conversação.
Então Betoven, com ares de conspiração, reparte um segredo e revela sua função oculta: era ele o cara incumbido de perguntar, quer participar do clube do livro?
Só isso.
Assim, simples.
Fico surpresa por ficar surpresa.
Desde então faço parte oficialmente filiada.
E a alegria dos muitos multiplica com todos os outros que ainda estão por chegar.

(Depois, livro e cordel foram encontrar outros olhos e nem lembrei de perguntar o final. Mas sei que um dia reaparecem, se for o caso.)



14.12.12

Bebedores anônimos de maracujina

- Sossegue que ainda não é a hora.

- Sim sim, tô sabendo. Mas é que faz parte da preparação da personagem.

- ...

Siroco

Não sei quem viu primeiro: o menininho ou o avô. Ou eu.

Sei que ficamos os três hipnotizados e surpresos.

E felizes: não cai não.


11.12.12

Silêncio nas palavras


[Ou: "Não leia agora/ eu não quero testemunhas/ dos meus crimes gramaticais.” Climério Ferreira]


Por comodidade, ou preguiça, ou déficit de atenção, desde sempre anotando coisas pra não esquecer e pra lembrar. Muda de intensidade e de foco, mas sempre engrenagem importante no auto-ensino de (vi)ver.
Então, um dia, resolvi ser sem muleta. Deitei na grama ensolarada e fiquei olhando as palavras passarem ligeiras, descasadas com o pensar e sentir. Quando quase, já não era nada daquilo. Cansei e adormeci. Acordei esvaziada e perdida, fui deixando.
Agora, vontade de simples ficar no que não se vê, quis de novo, diferente. Não só registro dos dias ou se colocar pra fora, quase um jeito de amar.
Claro que me assustei. Tanto que empaquei de novo. Também por não querer assumir minha participação nos dias se esgotando velozes, por overdose de entender e ainda pelo velho costume das correntes que me atavam a uma outra que fui. 
Muito por medo do que acontece depois.
Sim sim, já tô careca de saber. 
Mas é que só agora mudou alguma coisa lá onde nascem os motivos: tentar não porque não existe outra saída mas pra abrir as asas, balançar os pés no abismo. 
Talvez ainda demore um tempo até acertar o passo, encontrar a melhor forma de. 
Parar de ensaiar a ida, enrolar sem poder, fingir de morta.
Ainda mais sabendo morto o paquiderme pré-histórico que fez casa sobre meu corpo, finalmente liberta dos esqueletos na bagagem que emperravam o movimento e a continuação da história.
Sempre pode ser que eu me perca. 
Mas sei também que se sobreviver saio lapidadinha: coisa fina.




7.12.12

Maria

Empoleirada na escada, limpa as persianas e oferece bolo de abacaxi. Bom também, mas melhor mesmo são os caldos, feitos com sorrisos e mãos cheias.

Com olhos sonhadores espia pela janela o azul e aguado dezembro. E aí ensina, sem perceber, a rima do ciclo das águas no cerrado:

'O ruim é que a chuva não tem paradeiro. Agora é o tempo inteiro, até janeiro. Se é ano bissexto, até fevereiro'.

Depois voltamos a esturricar. 



5.12.12

Pelo caminho de volta seria que


Rasgo o silêncio e falo. Verdade: a ideia primeira já se transfigurou exponencialmente.

Muita coisa destampada de recente, cheiro-som-gosto-forma-cor. Mareei.

Quanto mais esvazia mais cheia se descobre.

Só uns dias fora e quase me fagocitam, reentrada vertiginosa na órbita. Ê centrífuga desgovernada do estar! Pássara do planalto central, será o que foi que se assucedeu?

Daí puxo uma teia de aranha ou um vislumbre de luz sobre a dessincronização da data estelar que obriga ao eterno retorno do sentido:
A dislexia sentimental multiplica infinta-mente o tempo gasto pro corpo celeste completar o caminho estipulado até o próximo degrau.

Tô cansada, e atrasada, e cansada. Ay tempo desembestado e esse futuro que nunca chega. Estamos vivendo agora o que era pra termos vivido ontem, merda!, como conserto o delay?

Quase descubro, só um pouquinho além e... e em seguida são luas e estrelas e mil estradas escorregadias no ar, de novo vou afrouxando os pontos, esgarçando os pensamentos, pra despertar sonsa e etérea, precisando refazer toda a ligação dos canais de entendimento. Sem fim, por 108 milênios.

Agora. A escolha é agora e o agora.

Sem mais. Explode a rebelião. E a cidade conspira.

Nem precisava, que já vinha quase mudando de tom, religada da ponta da pirâmide até as fontes e elefantes e corujas e golfinhos e tartarugas e lobos e cavaleiros do apocalipse no porão.

Mesmo assim, que bonito é o desnecessário, nessa noite de Oyá uma festa de bardos e menestréis clássicos-candangos-pós-modernos pousou debaixo da minha janela, energias bonitas dançando no terreiro. Exorcismo poético de ambientes. E.

Uma mulher vestida de branco uivou para a lua.

(Era eu, mas não.)

E a utopia é de quem acreditar por último. 

“Pelo caminho de volta seria que cheguei, perdida.
Encontrei uma pedra. Fui levando para o fundo do poço.
Moço, moço, moço que agonia, aconteceu
Naquele dia em que você saiu da minha vida.

Tomei dois goles de cicuta,
Puta que pariu como doeu.
Eu vi o céu me arrependi.
Fiquei até com dó de mim.

Meu coração, de tão covarde, é seu.”



30.11.12

Jardineira

No sonho mastiguei folha de planta desconhecida sem pedir licença.

Dois milésimos de segundos oníricos depois o tempo se jogava pra frente e pra trás enquanto bebia um amortecimento gelado.

Tento anotar rapidamente as letras/números de contas e fórmulas, coloridas bailarinas aéreas, em pedacinho de papel amassado que guardo apertado na mão esquerda.

Ao despertar espio a palma, ansiosa pra rever a coordenada de futuro: folha em branco, vazia e seca como terra evaporada há séculos.

Nos sulcos arados pelo destino só li silêncio, e não soube mais o que tinha descoberto que era hora de plantar.


25.11.12

Deserto alagado

Foi o que me contou o charreteiro. Que choveu tanto que ficou gente presa nos carros e ônibus, operação de resgate e tudo, que as superquadras submersas dariam bons vídeos.

Pensei no povo das ruas, pra quem é mais fácil viver na secura.

Então, depois, pergunto pro Ísquilo suas impressões do tal dilúvio. E simples ele responde:

- Não vi. E não acredito.

Êta cidade espalhada de lonjuras: enquanto o sol esturrica a quadra ímpar, nuvem cheia deságua na par.

Será essa a beleza?

4.11.12

14.10.12

Dialética

- Um dia você vai aprender a viver. Você não merece aquilo que você vivia não. Mas acalma que agora é nóis. Vamo começa a se divertir, irritar até os safado do estrangeiro. Só não seja covarde!

- É muita droga pra poca idade.

- Se não tivesse combate não tinha droga. Do jeito que tá nunca vai acabar essa porra.

7.10.12

Alberto

Começou a trabalhar com couro ainda criança. Depois passou por várias outras funções e lugares, até RH de empresa, mas não era valorizado. 'Tenho capacidade, vou-me embora', disse ele pra aquela vida e voltou pra profissão primeira.

'Aqui ganho pouco mas eu sonho'.


22.9.12

De gota em gota

(Bem-vinda!)

Depois da tempestade de areia já nem pensava mais nisso. Em pé, olhos calmos fitando o horizonte através do corpo quebrado e ressequido, dividida entre o entender e o se deixar sentir, num estado puro de tanto-faz-o-que-vier-o-pior-de-tudo-eu-já-passei.

Parte do deserto.

Lady of Storm do lado avesso.

Talvez por isso não vi os sinais e não acreditei muito quando o cheiro invadiu entradas e, denso, me achou na multidão. Nem tentei espiar pra conferir e continuei no programado, bem aproveitando a temperatura pré-fabricada de ambientes artificiais antes de encarar mais uma vez a secura do começo de noite.

Então o moço viu e me mostrou: 'tá chovendo!'

Riu quando eu contei que ia embora dançando na chuva mas bem sei que era a vontade secreta de muita gente na cidade, tal comoção geral se espalhou nos rostos agradecidos.

(No meu pensar, inclusive, me vi foi bem com a língua de fora tentando apagar o fogo de dentro.)

Mas como se completa o que já estava completo? Ter pressa e ao mesmo tempo adiar o agir só pra sonhar um pouco mais com como seria o momento assim que... então lembrei da lição do agora, fisguei a vontade e segurei o quando pela mão. Saímos um só.

Na segunda pisada fora, tiozinho de butuca chega fluente no dialeto dos que tudo vendem oferecendo guarda-chuva, desde quando esperava prevenido?, respondo não e ele entende, rimos os dois. Na verdade todo o mundo está rindo, vontades lavadas.

Nessa altura o pó já assentou nos caminhos recém brilhantes, mas os 3 pingos que caiam aqui e ali evaporavam antes de tocar na pele. Ando mais um trecho, frustrada, sensação vaga de ter caído na pegadinha do malandro.

Então chego na outra asa do pássaro e a festa vira verdade. Tanta alegria que nem me preocupo com as maquininhas e livros que carrego, o universo cuida. De tão agradecida da água, que lavou o sangue coagulado do dragão ferido, que saí do pensar. Só fui, inteira.

E estou. Noite feliz de jardineira: depois de 103 dias sem chover a água desce justamente depois de terminados os novos arranjos no paisagismo interior. Bom sinal, bom sinal. Cobras de luz no céu.



2.9.12

Vampiro doidão


Ou: Morcegos equilibristas.


Viaja que é um vampiro desses de filme.

- Nunca sonhou em morder meu pescoço não?

- Nem há 35 vidas atrás.

- Uma pena, suspira. Mas não esquece da ideia não... e continua lombrando um monte de atrizes provocantes na cena imaginária e a saliva que pinga dos caninos proeminentes esfria seus pés.

Mastiga outros enredos e então pede:

- Quando eu morrer me enterra de pé?

- !?

- De pé, deitado não. Abre um buraco menor. Minha irmã é uma caipirinha, não vai querer fazer isso. Cê faz?

- ?!

- É que eu quero voltar!

- ...

1.9.12

Flor da chuva

Ver desabrochada no cerrado, sem previsão de chuva, quebrou uma vida inteira de confiança.


31.8.12

Literal

Ia atravessando a rua, olhos de sono, quando o cara na cadeira de rodas grita 'me ajudem!'. A minha insensibilidade me esbofeteia a cara e aperta meu estômago. Volto o trecho andado e pergunto:

- Quer atravessar?

Ele e o entregador de panfletos riem: não.

Retomo o caminho interrompido e ele grita outra vez:

- Cinquenta centavos, dez, qualquer coisa. Me ajudem por favor!

Ah... demoro eu.

29.8.12

A chuva antes da água

Combinei uma aula de rap com um maluco da cidade logo ali, depois da pista, no campo de futeba.

- Nunca foi não?

Não. E vai ver foi por isso que distraída andei tanto que me perdi nos caminhos, quase sempre, e demorei até o campo-praça-quadra-parque-banco, deserta. Filtrada por entre galhos das árvores retorcidas, a luz da quase inteira e cheia lua azul do ano iluminando o caminho. Secura e calor, calor e secura.

Espero, mas já desconfiando que é o lugar errado. Volto o ido, contando as pessoas que passeiam com seus cachorros atravesso números e letras, e um quarteirão adiante descubro outra praça. Só que cheia de vida. Crianças correndo-caindo-chorando-levantando atrás da bola, mães e pais que observam e incentivam. 

A ironia: na fuga das crianças boleiras e esportistas é bem com elas que encontro, quase obrigação, e espanto. Alguns dos jogadores parecem ter aprendido a andar ainda ontem. Que coisa. País do futebol, dizem. 

Certeza que é o lugar errado. 

E já ia no meio da volta e meia quando dois moços me abordam perguntando se acho que este mundo pode sobreviver. Pronto: lá se perdeu minha aula de rap substituída por intensivo de preparação pro apocalipse. Argumentos e atores muito bem ensaiados (Jeová explica), citações e recortes grifados na bíblia devidamente aberta e lida pra provar. Pra provar o quê? Cientificamente, seu ponto de vista? A dificuldade de achar o ponto em comum. Ué. Somos iguais, não? 

Vai ver era o lugar certo.

Retorno e só aí, no descampado, reparo nas traves caídas.

E então, no café do meu quintal, folhas escritas decoram varais e pessoas começam a se juntar. O cantor miando esganiça Violeta Parra e, pelo avesso e decepcionante, consegue minha atenção. E os outros menestréis candangos de depois também. Música e poesia para marcar território. Assisto tudo sem óculos que é pra não cair em tentação. E testar meus olhos. 

Sabiá cantou no sertão, e ele só canta quando chove. O vento não balançou uma folha sequer mas rodou moinhos. 'Vi lagarta no casulo ganhar asas e voar, essas coisas são milagres que só não vê quem perdeu o dom de se admirar, tão certo como é um dia assim será'.

Que noite encharcada esta.

'Volver a ser de repente tan frágil como un segundo, volver a sentir profundo...'

24.8.12

Equilibrados

- Você me ouve pensando?

- ?

- Quero saber. Porque eu preciso ser dois amigo sincero.

- ...

23.8.12

Por las mañanas no me despierto


Tenho ressaca de viver, mas é só durante o dia. Começa a anoitecer e acorda alguma coisa dentro de mim que liga os pontos e sou. Acontece que sempre chega uma hora em o corpo pede pra dormir e eu concordo, e desconfio que é aí que perco as peças no labirinto da cachola. Depois, nem bem o sol explode na janela começa o imenso esforço pra colar as ideias de ontem no agora de hoje. 

Às vezes tento lembrar se sempre foi assim, ou pior ou melhor, mas sei que também é só outra maneira fácil de me perder e adiar. E já me sinto tão desviada do rumo, bem daquele mesmo que não sei qual, tão cansada de tatear no escuro que né. Eterna exausta, como é que se passa de fase?

Vai ver escondi a resposta tão bem que nem eu encontro mais, mil fechaduras. E quando penso que terminei de abrir todas, olho com mais atenção e descubro que era só mais outra casca-camada, como aquelas bonecas russas colocadas dentro umas das outras. Do jeito que a coisa vai, parece que o recheio não é mais do que grão de poeira cósmica. Ou, ainda, será o avesso do grão? Mesmo assim, sem ser visto a olho nu, é preciso estar aberto pra estar pleno, coração. E, com olhos ardidos, continuo debruçada no descortinar sem fim, a única possibilidade.

Mas o reforço às vezes aparece de onde menos se espera, das compartilhações no caminho. (A sua guerreira alivia o fardo da minha.) As histórias-lembranças-planos, o pranto e o riso, todos somos um. Por isso rasgo um pedaço da insolação da madrugada e grudo aqui, nessa tarde escaldante em que meus recentes olhos de coruja piscam pra poder ver e quase quase enxergam além da escuridão.

Tenho sono. E sonhos.  

Mas, por enquanto, basta respirar.



Lento corpo

- Tô feliz, muito feliz.

Disse e era verdade, respondendo o perguntado.

- Não parece, responde ele, olhos de avaliar energias.

É que o sorriso vinha de tão fundo, rompendo camadas paleolíticas, que ainda não chegara na boca.

22.8.12

Vale tudo

- E karatê?

- Minha luta agora é aqui, bate na fronte com os dedos. Descobri que vale mais que o corpo.

- Então um dia nóis tira um round.

20.8.12

Pedaço de carne

Viaja que é um rei guloso e quer ter 2, 3 rainhas.

Diz que sonha em trepar com essas atriz tudo, essas cantoras tudo, tipo um rap nacional.

Também sonha com uma enfermeira que conheceu no hospital na sua última internação, branquetona, galega gostosa.

Ah, e (claro!) com a Dilma. Surubão, se pá.

Quando acorda só o concreto frio da calçada faz companhia.

Quente, mas não fervendo

- O chichimarrão tá pronto?

- ...

Re-conhecidos

Ia distraída atrás de minhas pernas, respirando o fim de tarde, quando o coração dá um aviso e me manda mudar de rumo, virar o vento. Obedeço. Serendipidade: na encruzilha do caminho, debaixo da árvore bonita, encontro novo velho parente de alma.

Um vento amigo que nasceu minuano mas já há algum tempo está tirando uma de siroco. Mas que também pode ser qualquer outro, inquieto e andarilho.

Saudamos a noite com nosso encontro, vi nascer a primeira estrela e fiquei mais forte. Dividimos memórias e fantasias, ponderamos sobre o tudo.

Ele falou coisas simples e verdadeiras, aquelas que muitos esquecem fácil no meio de tanto desajustamento e que outros não acreditam mas quem sabe descobrirão, pérolas no deserto. Que é bom viver. E mais, como é diferente Ser quando se sabe como é bom viver.

Sussurando segredos de cachoeiras me lavou a alma e quarou minhas vontades. Contou das pessoas conhecidas em andanças e dos jardins que existem além. Das pedras-plantas-sonhos e do filme da vida. Da da presença compartilhada, da importância de não deixar pra depois, da beleza dos encontros e da alegria do reconhecer o que somos: grande família.

Ri cristalino, espalhando folhas e sementes. Dali brotam coisas, lugares, sabores e sensações novas. Botões de flores e sóis roxos.

- É tudo nosso, fala sentindo.

E, sorrindo, eu também sei.

Imaginagem: internet.com

14.8.12

13.8.12

Meu caminho pra Bras-ilha


Na primeira vez que­ vim só cheguei até Minas.

Vinha com mais um monte de gente, estudantes com a voz preparada pra lição de protestar nas decisões do país. Mas é terceiro mundo, o dinheiro é ralo e o sol na estrada é quente, e vontades de viver as mudanças nem sempre são forças mais poderosas que ônibus velhos que quebram e se perdem, que nunca chegam ao seu destino. Presos na Fronteira. Daí ficou uma vontade frustrada de nadar no espelho d’água da esplanada, com amigos de moicanos coloridos que conheceria quando chegasse, e uma promessa – com convicção de certeza – de um dia voltar.

Nada se aprende pelo caminho fácil.

Dali passou muito vento e muita água. Promessas e vontades foram esquecidas, morreram, mudaram. Percorri caminhos inteiros só pra me certificar que não levavam a lugar nenhum e só me distanciaram de onde pretendia chegar. Cansada, mas leve, ia voltando trecho andado reparando nos detalhes atenta pra não perder a entrada do portal escondido. E quem procura acha. E a entrada do portal eram quilômetros no deserto até chegar na outra porta, que é outra história.

Então, um outro dia, o destino me sopra mais uma vez pra essas bandas. Vim divida entre a curiosidade e o sofrimento do medo ainda indomado de avião (nunca ninguém pra segurar pela primeira vez a minha mão). Bate e volta. Sabia antecipada que o cronômetro apertado dos compromissos não deixaria espaço pra desbravamentos, mas o tempo bastava pra que olhasse no fundo do olho do pássaro. Olhei, mas só quem viu de verdade foi ele.

De começo a cidade já mostrou seus dentes e mistério em careta-sorriso-careta, seca e agreste, quase rude. Seu ar me esfolou como mil grãos de cacos de vidro invisível. Cansou meus olhos, grudou em minha pele, secou minha garganta e encheu de sertão meu cabelo. Gostei não. Por mim nunca mais nos veríamos: eu sei que você existe e você sabe de mim, nos encaramos desarmadas e cientes, sigamos nossos caminhos e fim.

Voltei pro todo dia de sempre e a esqueci. Sem dor, inclusive, do que ficou sem ver. Passa tempo-estrada-porteira até o momento iluminado em que quase soube com certeza qual seria o próximo passo, desconstruída calculava o que viria. Nesses tempos a cidade cinza se coloriu e me fez feliz. Redonda de tão, acomodada. Então a cidade pássaro chamou 3 vezes pelo meu nome secreto e todas as coisas mudaram de lugar.

Respondi, mas entender mesmo só depois. (E chega algum tempo em que se entende tudo?) Numa noite de terça-feira desembarquei com a vida numa única mala na terra do verão eterno direto pra pensão trash/clandestina achada na internet. No quarto minúsculo e sem janelas o mofo desceu pela parede esmagando minha garganta e peito, sufocando minhas certezas, trote de caloura. Perguntei pra parte de mim que sabe das coisas o que é que eu tava fazendo ali e não ouvi resposta. Que fazer quando a resposta é não ter resposta? Na cama estranha, torta e rangendo, pensei na vida que eu tinha largado e que não já não existia mais pra que pudesse voltar. Precisava mesmo deixar tudo pra trás pelo desconhecido? No meio do deserto senti frio, e a caminhada mal tinha começado.

Depois do cortiço mudei pro apertamento abençoado que me achou e que me faz feliz todos os dias, com rede na sala. Continuei com ritmo de acampamento, espartana, sem tv e sem espelho. E por muito tempo não me reconheci quando vi meu reflexo nas vidraças da vizinhança.

Foi quando me descobri quebrada e retorcida e entendi minha fuga pro planalto central do ser. Demorei, apreciando-entendendo-consertando tudo com cuidado, revivendo um certo jeito antigo de monja. Durante todo o tempo a aridez-sensação-certeza de deserto: o caminho interior que só se faz isolada, o trazer pro real o que já vivera em outras esferas. Tempos depois uma brasiliense me explica, em dia de profecias fartas, que quem encontra o silêncio da cidade o carrega pra onde vai. Que as pessoas que moraram aqui estão impregnadas de um silêncio tão antigo quanto o deserto, mas silêncio rico de imagens coloridas.

Acreditei. Mas só porque também vejo. Os horizontes por todo lado dão a sensação de algo que não termina, o céu toca o chão e a lonjura dos espaços guarda histórias de todos os cantos. O planejamento das coisas. As pessoas observam. E pelo olhar trazem naturalmente essa amplitude pra dentro. Brasília amplia a alma e afina a visão. Desenreda meus sentires e me força a encontrar respostas: decifra-me ou te devoro.

Mil e uma missões, curar a visão distorcida, a antena quebrada. Ver além de política e dinheiro, ver a vida que luta sob o sol. Demora mas chega o dia em que, e um dia não é nunca. Recuperar o que nunca tive: olhar de turista. A alegria absurda e deslumbrada por essa vida quente e pulsante, pelo que se vê e o que se esconde, pelo que se sente e é. Mesmo a feiúra que também existe. Tudo.

Até vencer a maior agonia nesta terra: a quase ausência de vento. Nascida e crescida na cidade dos ventos uivantes, lobos bravos feitos de ar correndo pelo céu das tardes frias, a ausência do barulho ininterrupto me ensurdeceu. Beirando o insuportável. Silêncio. Depois me ensinou a sentir as sutilezas das brisas invisíveis que mal movimentam o ar e que, dia após dia, depositam folhas na minha sala de estar. A delicadeza do verbo.

Comecei a vir anos atrás, mas a verdade é que só cheguei mesmo foi ontem, vestida de roxo. E cheguei consciente do meu coração disléxico, da memória de gigas insuficientes, da demora do entendimento e da necessidade das palavras-imagens-sons no meu autoensino/aprendizado de viver. É o que faço já.

Agora, sem sonhar com a partida, conserto um cabuloso déficit de atenção que impede meus pensamentos hiperativos de se fixarem nas coisas, de lembrar do importante no meio de toda enxurrada de informações. Expansão. (Re)Conhecimento do movimento das águas, das florestas invisíveis, pântanos drenados, do povo que sou. E das histórias que o vento virado que engoli cochicha nos meus ouvidos, só que ao contrário.

Vim, vi, vivi. No tempo certo estarei em outros lugares e sentirei saudades desses dias abafados, desse ar que lixa as arestas, dessa gente que me ensina tanto. Daqui levarei o silêncio e a paisagem, o primeiro fruto, a espera da chuva, a tarefa completada.

E eu. 


Aberta.


8.8.12

Daquele tempo de menino...

- Por isso que que eu virei drogado, porque queria ser criança pra sempre.
- ...

Ademar

Amanhece nublada a terra do verão eterno, mesmo assim o calor gruda nas dobras do corpo.

Trago na bolsa o sapato com crise de cor.

Digo bom dia e ele demora a responder, como se eu fosse vidro-visagem parada na sua frente, senhor do tempo.

E é no seu tempo que divide rememorações da vida enquanto espero as camadas assentarem. Conta que nasceu em Ouro Branco - Pernambuco, cidadezinha perto de Arco Verde. Já tem 53 anos de Bras-ilha, e no próximo mês volta pra antiga terra pela primeira vez, verificar se ainda tem algum parente vivo. 

Saudade? Sentiu nada. É que perdeu seus pais com 8 anos e aí ficou muito desgostoso da terra, 'o povo gera muita miséria, em época de política, como agora, se vende por um saco de feijão'. Também com 8 anos foi que começou a consertar sapatos, 'profissão de família, até as mulheres aprendem só de ver'.

Aí lembra da juventude, viola na praça. Juntava muita moça bonita, dava até medo!, e sorri malandro e largo sem dentes. Hoje o mundo mudou muito.

Satisfeito com a vida, confessa que já quis até ser rico. 'Achava que ia ser como no Egito', explica e eu sorrio. Mas depois descobriu que tem muitas drogas nesse negócio de riqueza e resolveu seguir por outra trilha.

- Vocês do Mato Grosso, Catarina, falam tão bonito... sotaque né? Eu acho. Não tem como, onde a gente nasce influencia a gente.

Isso mesmo, e a raiz que não se arranca. Papéis, folhas e poeira rodopiam ao nosso redor embalados por súbita e inesperada rajada. Mulheres seguram saias e vestidos, homens protegem os olhos.

- Vento gostoso né?

Eu acho, respondo feliz e um tantico saudosa. E recebo a verdade:

- Me deixa agoniado.



Disfarce

- Pra burro só falta as penas.
- ...

7.8.12

SCS

não consigo
sair destas palavras
setor comercial sul

em que banco eu pago
pra sair do
setor comercial sul

em quantas prestações
eu saio do
setor comercial sul

você quer 30%
do meu salário
pra me livrar do
setor comercial sul?

dois litros do meu sangue
pra me tirar do
setor comercial sul?

pra sair do
setor comercial sul
eu faço qualquer negócio

só não vendo a alma


(Nicolas Behr)

6.8.12

Segundis

No sol já a pino da manhã ele bebe uma cerveja no ponto de ônibus, ri sem dentes, conversa com amigos que mais ninguém vê.

Algumas filosofices respingam, a plateia grava nos celulares e ri junto da loucura da vida.

- Esse doido é muito doido.

20.7.12

Canção pra dois

Com sorriso no rosto, brincam de cantar pedaços de músicas. Ele lembra, feliz!, que tem um radinho na mochila: 

Quando deus te desenhou ele tava namorando... bbrrzz!... eu não existo longe de você e a solidão é o pior castigo... bbrrzz!

Então encontram Aquela, a que cantam inteira e a plenos pulmões. Talvez pra afastar a possibilidade do futuro, talvez por gostar da música, e talvez por toda outra tal vez que existir.

De mãos dadas: e agora?, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer...



18.7.12

Dia de cajá-manga

- Mamãe cadê Maria?

- Maria foi passear.

Os passeios de Maria fazem papai e mamãe chorar.

9.7.12

Quando o vento virou

Tudo calmo e igual no castelo das ideias que esperam o tempo de nascer.

Uma brisa morna, carregada de cheiros e imagens de outros lugares, ondula a saia das nutridoras de futuro e espalha lembranças de flores pelo ar. Insistente, enrosca em minhas pernas e me puxa pelo braço querendo mostrar a hora em que a semente quebra a casca. Resisto, preguiçosa de saber, feliz com o pouco que já vi.

Não sabia do perigo que espera os que se opõem, descubro atravessando.

Uma rajada brusca levanta poeira cósmica do chão e enche minha visão de cacos coloridos, sem dó. Pisco várias vezes, cega, enquanto meu corpo é sacudido por mão invisível. Quando consigo abrir os olhos me assusto: sobre minha cabeça tudo está suspenso e vivo. Dança enlouquecida das estações, meio dia e meia noite no mesmo céu de agora.

Boquiaberta observo enquanto palavras saem de mim, uma a uma, indo somar corpo à nuvem gigantesca que paira no céu. Depois das palavras perco as recordações, o que pensava saber e sentir, toda a história até aqui. Perco o corpo e perco o nome. A boca que já não tenho seca com o calor de mil desertos, meus pés áereos sobem para o tornado enquanto enxergo tudo por um olho que não pisca e não existe. Sentiria vertigens se ainda soubesse como.

Centrifugada em minha própria natureza. O que sobra depois que tudo foi removido? Algo rasga o estar, um relâmpago escorrega do centro flutuante em que pairo, o barulho só chega depois. Desço com eles mas continuo no alto, a massa incolor de tudo que se foi aquieta em seu carro-céu. E desaba.

Tudo inunda. Da água nasce um novo corpo, novas combinações dos mesmos elementos pelo avesso, mas com algo que não havia, um vento-alma forjado no fogo e grito do raio, centelha divina. Tudo mudado, viajante estelar perdida em chão de planeta desconhecido.

Lentamente começo a me mexer, acordando de sono milenar. De tão lúcida me sinto irreal. Volto da morte para vida nunca vivida, plena. 

Transfigurada.


Imaginagem: internet.com

1.7.12

Rádio Braza


Marca o compasso na caixa de fósforos enquanto gela a bunda na escadaria do bloco.

Noite clara, no suposto frio da terra do verão eterno, desenhos dançam animados nas sombras refletidas no chapiscado estourado do muro.

- É doido véi. Pra curtir o rap tem que ouvir a letra, entendeu? Tá ligado? Presta atenção na letra aí você não vai odiar rap, nem sendo lá do sul. Você vai amar rap. É igual samba, vai rimando assim e assim só que é um batidão: tum tundum tum.

- ...

9.6.12

Lúcio



Na tarde de domingo que começa a acabar, almoço na feira olhando o movimento das coisas e tentando não pensar na segunda que já mastiga o tempo. 

Ele chega descalço e manchado de tinta, agarra minha atenção e obriga que eu desça do mundo das ideias. 

Avaliativo, dá uma filmada nas pessoas ao redor e acabo escolhida pra primeira. Vai puxando a cadeira e se aboletando como se fosse velho conhecido. Para-raios de, sempre.

Pensa tão rápido que na hora de soltar o som acaba se atrapalhando: as palavras se emaranham todas e as sílabas se repetem. Mas, como tudo que basta querer para que, lentamente a gente se entende. (Ou entendo eu.)

- Vim te convidar pra ver meu trabalho. Fica lá atrás, bloco E, 167.

E então conta pedaços de vida. Que já fez 6 exposições, logo logo faz a 7ª. Tem 16 anos e dali a alguns dias vai fazer aniversário. Que tem dois irmãos, uma de 19 e um de 23 anos, e sua mãe tem 53. 

Diz que começou a pintar com 2 anos. Mais tarde chegou o dia em que foi simples assim: saiu do colégio e pintou 14 quadros de uma só vez. Mas, sorrindo, confessa que se quiser pode pintar 100 mil.

- Só pinto abstrato.

Digo que mais tarde passo lá, ver sua obra. Conversamos mais um pouco e ele sai lépido e fagueiro como chegou, espalhando convites pras outras pessoas por onde passa. Aula de automarketing.

Quando encontro o lugar, ele exibe satisfeito a obra recém parida, estendida na grama, enorme. A mãe comenta que vai demorar a secar, que vão ter que esperar noite adentro.

Lúcio mostra seus outros quadros. Conta histórias enquanto apresenta todas suas tintas e seus pincéis, que organiza pra bagunçar só pra poder arrumar de novo. No fim revela um segredo e sorri maior: a sacola que guarda sua roupa de palhaço.


Despede-se com um abraço, colorido, e acena enquanto me afasto. Tchau amiga, diz, e o vento espalha na distância as palavras ainda inteiras. Tchau, amigo, vou pensando pelo
caminho recém tingido em technicolor.

5.6.12

Estudo dos ventos

Na mansão de Iansã, hóspede dos ventos. A espera é o aprendizado da falta de medo.

Voltar os caminhos andados recuperando coisas soterradas pela areia do tempo, inacabadas.

É que estou cansada de fugir.

E é tanta gente se convencendo que é inútil desde o início que fica nublado saber o que não se precisa e só se pensa que precisa, tão mais fácil desistir. Tempo que se fecha sem chover.

Sem culpas e com poucas desculpas. Precisava fazer uma escolha e escolhi a mim. Quando não se desiste é porque venceu.

Além das falsas sombras, completa a busca pela intuição, da linha entre todos os opostos brota alma nova e pronta para a guerra (espada de fogo conquistada), fiel à paixão que a move. Espiralando em ventania magnética, dança iluminada, nascida da tormenta, livre e forte para o que há de vir.

E com cabelos de vento.

1.4.12

Saturada

- Vou te deixar loca.

- Hoje em dia já cruzei a ponte: só sabedoria.

- Primero de abril?

31.3.12

Neon


Nos cruzamos sob o sol ofuscante das tardes incendiárias.

Ele conta que chegou ainda ontem na cidade, que tava em Belém.

Filho de mãe hippie, desde cedo morou na rua, saiu pra conhecer o mundo. Nasceu em São Luís do Maranhão mas já desceu até São Paulo, desbravando.

Mas pela Bras-ilha é a primeira vez.

(Diz que tem 19 anos mas parece ter bem menos, uma penugem fina de bigode. Desconfio que o que parece é.)

Levo um sorriso de lembrança e uma flor de lótus. E uma 'pulseirinha do reggae' de brinde.

E sorte.

Pra nós dois.