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31.8.12

Literal

Ia atravessando a rua, olhos de sono, quando o cara na cadeira de rodas grita 'me ajudem!'. A minha insensibilidade me esbofeteia a cara e aperta meu estômago. Volto o trecho andado e pergunto:

- Quer atravessar?

Ele e o entregador de panfletos riem: não.

Retomo o caminho interrompido e ele grita outra vez:

- Cinquenta centavos, dez, qualquer coisa. Me ajudem por favor!

Ah... demoro eu.

29.8.12

A chuva antes da água

Combinei uma aula de rap com um maluco da cidade logo ali, depois da pista, no campo de futeba.

- Nunca foi não?

Não. E vai ver foi por isso que distraída andei tanto que me perdi nos caminhos, quase sempre, e demorei até o campo-praça-quadra-parque-banco, deserta. Filtrada por entre galhos das árvores retorcidas, a luz da quase inteira e cheia lua azul do ano iluminando o caminho. Secura e calor, calor e secura.

Espero, mas já desconfiando que é o lugar errado. Volto o ido, contando as pessoas que passeiam com seus cachorros atravesso números e letras, e um quarteirão adiante descubro outra praça. Só que cheia de vida. Crianças correndo-caindo-chorando-levantando atrás da bola, mães e pais que observam e incentivam. 

A ironia: na fuga das crianças boleiras e esportistas é bem com elas que encontro, quase obrigação, e espanto. Alguns dos jogadores parecem ter aprendido a andar ainda ontem. Que coisa. País do futebol, dizem. 

Certeza que é o lugar errado. 

E já ia no meio da volta e meia quando dois moços me abordam perguntando se acho que este mundo pode sobreviver. Pronto: lá se perdeu minha aula de rap substituída por intensivo de preparação pro apocalipse. Argumentos e atores muito bem ensaiados (Jeová explica), citações e recortes grifados na bíblia devidamente aberta e lida pra provar. Pra provar o quê? Cientificamente, seu ponto de vista? A dificuldade de achar o ponto em comum. Ué. Somos iguais, não? 

Vai ver era o lugar certo.

Retorno e só aí, no descampado, reparo nas traves caídas.

E então, no café do meu quintal, folhas escritas decoram varais e pessoas começam a se juntar. O cantor miando esganiça Violeta Parra e, pelo avesso e decepcionante, consegue minha atenção. E os outros menestréis candangos de depois também. Música e poesia para marcar território. Assisto tudo sem óculos que é pra não cair em tentação. E testar meus olhos. 

Sabiá cantou no sertão, e ele só canta quando chove. O vento não balançou uma folha sequer mas rodou moinhos. 'Vi lagarta no casulo ganhar asas e voar, essas coisas são milagres que só não vê quem perdeu o dom de se admirar, tão certo como é um dia assim será'.

Que noite encharcada esta.

'Volver a ser de repente tan frágil como un segundo, volver a sentir profundo...'

24.8.12

Equilibrados

- Você me ouve pensando?

- ?

- Quero saber. Porque eu preciso ser dois amigo sincero.

- ...

23.8.12

Por las mañanas no me despierto


Tenho ressaca de viver, mas é só durante o dia. Começa a anoitecer e acorda alguma coisa dentro de mim que liga os pontos e sou. Acontece que sempre chega uma hora em o corpo pede pra dormir e eu concordo, e desconfio que é aí que perco as peças no labirinto da cachola. Depois, nem bem o sol explode na janela começa o imenso esforço pra colar as ideias de ontem no agora de hoje. 

Às vezes tento lembrar se sempre foi assim, ou pior ou melhor, mas sei que também é só outra maneira fácil de me perder e adiar. E já me sinto tão desviada do rumo, bem daquele mesmo que não sei qual, tão cansada de tatear no escuro que né. Eterna exausta, como é que se passa de fase?

Vai ver escondi a resposta tão bem que nem eu encontro mais, mil fechaduras. E quando penso que terminei de abrir todas, olho com mais atenção e descubro que era só mais outra casca-camada, como aquelas bonecas russas colocadas dentro umas das outras. Do jeito que a coisa vai, parece que o recheio não é mais do que grão de poeira cósmica. Ou, ainda, será o avesso do grão? Mesmo assim, sem ser visto a olho nu, é preciso estar aberto pra estar pleno, coração. E, com olhos ardidos, continuo debruçada no descortinar sem fim, a única possibilidade.

Mas o reforço às vezes aparece de onde menos se espera, das compartilhações no caminho. (A sua guerreira alivia o fardo da minha.) As histórias-lembranças-planos, o pranto e o riso, todos somos um. Por isso rasgo um pedaço da insolação da madrugada e grudo aqui, nessa tarde escaldante em que meus recentes olhos de coruja piscam pra poder ver e quase quase enxergam além da escuridão.

Tenho sono. E sonhos.  

Mas, por enquanto, basta respirar.



Lento corpo

- Tô feliz, muito feliz.

Disse e era verdade, respondendo o perguntado.

- Não parece, responde ele, olhos de avaliar energias.

É que o sorriso vinha de tão fundo, rompendo camadas paleolíticas, que ainda não chegara na boca.

22.8.12

Vale tudo

- E karatê?

- Minha luta agora é aqui, bate na fronte com os dedos. Descobri que vale mais que o corpo.

- Então um dia nóis tira um round.

20.8.12

Pedaço de carne

Viaja que é um rei guloso e quer ter 2, 3 rainhas.

Diz que sonha em trepar com essas atriz tudo, essas cantoras tudo, tipo um rap nacional.

Também sonha com uma enfermeira que conheceu no hospital na sua última internação, branquetona, galega gostosa.

Ah, e (claro!) com a Dilma. Surubão, se pá.

Quando acorda só o concreto frio da calçada faz companhia.

Quente, mas não fervendo

- O chichimarrão tá pronto?

- ...

Re-conhecidos

Ia distraída atrás de minhas pernas, respirando o fim de tarde, quando o coração dá um aviso e me manda mudar de rumo, virar o vento. Obedeço. Serendipidade: na encruzilha do caminho, debaixo da árvore bonita, encontro novo velho parente de alma.

Um vento amigo que nasceu minuano mas já há algum tempo está tirando uma de siroco. Mas que também pode ser qualquer outro, inquieto e andarilho.

Saudamos a noite com nosso encontro, vi nascer a primeira estrela e fiquei mais forte. Dividimos memórias e fantasias, ponderamos sobre o tudo.

Ele falou coisas simples e verdadeiras, aquelas que muitos esquecem fácil no meio de tanto desajustamento e que outros não acreditam mas quem sabe descobrirão, pérolas no deserto. Que é bom viver. E mais, como é diferente Ser quando se sabe como é bom viver.

Sussurando segredos de cachoeiras me lavou a alma e quarou minhas vontades. Contou das pessoas conhecidas em andanças e dos jardins que existem além. Das pedras-plantas-sonhos e do filme da vida. Da da presença compartilhada, da importância de não deixar pra depois, da beleza dos encontros e da alegria do reconhecer o que somos: grande família.

Ri cristalino, espalhando folhas e sementes. Dali brotam coisas, lugares, sabores e sensações novas. Botões de flores e sóis roxos.

- É tudo nosso, fala sentindo.

E, sorrindo, eu também sei.

Imaginagem: internet.com

14.8.12

13.8.12

Meu caminho pra Bras-ilha


Na primeira vez que­ vim só cheguei até Minas.

Vinha com mais um monte de gente, estudantes com a voz preparada pra lição de protestar nas decisões do país. Mas é terceiro mundo, o dinheiro é ralo e o sol na estrada é quente, e vontades de viver as mudanças nem sempre são forças mais poderosas que ônibus velhos que quebram e se perdem, que nunca chegam ao seu destino. Presos na Fronteira. Daí ficou uma vontade frustrada de nadar no espelho d’água da esplanada, com amigos de moicanos coloridos que conheceria quando chegasse, e uma promessa – com convicção de certeza – de um dia voltar.

Nada se aprende pelo caminho fácil.

Dali passou muito vento e muita água. Promessas e vontades foram esquecidas, morreram, mudaram. Percorri caminhos inteiros só pra me certificar que não levavam a lugar nenhum e só me distanciaram de onde pretendia chegar. Cansada, mas leve, ia voltando trecho andado reparando nos detalhes atenta pra não perder a entrada do portal escondido. E quem procura acha. E a entrada do portal eram quilômetros no deserto até chegar na outra porta, que é outra história.

Então, um outro dia, o destino me sopra mais uma vez pra essas bandas. Vim divida entre a curiosidade e o sofrimento do medo ainda indomado de avião (nunca ninguém pra segurar pela primeira vez a minha mão). Bate e volta. Sabia antecipada que o cronômetro apertado dos compromissos não deixaria espaço pra desbravamentos, mas o tempo bastava pra que olhasse no fundo do olho do pássaro. Olhei, mas só quem viu de verdade foi ele.

De começo a cidade já mostrou seus dentes e mistério em careta-sorriso-careta, seca e agreste, quase rude. Seu ar me esfolou como mil grãos de cacos de vidro invisível. Cansou meus olhos, grudou em minha pele, secou minha garganta e encheu de sertão meu cabelo. Gostei não. Por mim nunca mais nos veríamos: eu sei que você existe e você sabe de mim, nos encaramos desarmadas e cientes, sigamos nossos caminhos e fim.

Voltei pro todo dia de sempre e a esqueci. Sem dor, inclusive, do que ficou sem ver. Passa tempo-estrada-porteira até o momento iluminado em que quase soube com certeza qual seria o próximo passo, desconstruída calculava o que viria. Nesses tempos a cidade cinza se coloriu e me fez feliz. Redonda de tão, acomodada. Então a cidade pássaro chamou 3 vezes pelo meu nome secreto e todas as coisas mudaram de lugar.

Respondi, mas entender mesmo só depois. (E chega algum tempo em que se entende tudo?) Numa noite de terça-feira desembarquei com a vida numa única mala na terra do verão eterno direto pra pensão trash/clandestina achada na internet. No quarto minúsculo e sem janelas o mofo desceu pela parede esmagando minha garganta e peito, sufocando minhas certezas, trote de caloura. Perguntei pra parte de mim que sabe das coisas o que é que eu tava fazendo ali e não ouvi resposta. Que fazer quando a resposta é não ter resposta? Na cama estranha, torta e rangendo, pensei na vida que eu tinha largado e que não já não existia mais pra que pudesse voltar. Precisava mesmo deixar tudo pra trás pelo desconhecido? No meio do deserto senti frio, e a caminhada mal tinha começado.

Depois do cortiço mudei pro apertamento abençoado que me achou e que me faz feliz todos os dias, com rede na sala. Continuei com ritmo de acampamento, espartana, sem tv e sem espelho. E por muito tempo não me reconheci quando vi meu reflexo nas vidraças da vizinhança.

Foi quando me descobri quebrada e retorcida e entendi minha fuga pro planalto central do ser. Demorei, apreciando-entendendo-consertando tudo com cuidado, revivendo um certo jeito antigo de monja. Durante todo o tempo a aridez-sensação-certeza de deserto: o caminho interior que só se faz isolada, o trazer pro real o que já vivera em outras esferas. Tempos depois uma brasiliense me explica, em dia de profecias fartas, que quem encontra o silêncio da cidade o carrega pra onde vai. Que as pessoas que moraram aqui estão impregnadas de um silêncio tão antigo quanto o deserto, mas silêncio rico de imagens coloridas.

Acreditei. Mas só porque também vejo. Os horizontes por todo lado dão a sensação de algo que não termina, o céu toca o chão e a lonjura dos espaços guarda histórias de todos os cantos. O planejamento das coisas. As pessoas observam. E pelo olhar trazem naturalmente essa amplitude pra dentro. Brasília amplia a alma e afina a visão. Desenreda meus sentires e me força a encontrar respostas: decifra-me ou te devoro.

Mil e uma missões, curar a visão distorcida, a antena quebrada. Ver além de política e dinheiro, ver a vida que luta sob o sol. Demora mas chega o dia em que, e um dia não é nunca. Recuperar o que nunca tive: olhar de turista. A alegria absurda e deslumbrada por essa vida quente e pulsante, pelo que se vê e o que se esconde, pelo que se sente e é. Mesmo a feiúra que também existe. Tudo.

Até vencer a maior agonia nesta terra: a quase ausência de vento. Nascida e crescida na cidade dos ventos uivantes, lobos bravos feitos de ar correndo pelo céu das tardes frias, a ausência do barulho ininterrupto me ensurdeceu. Beirando o insuportável. Silêncio. Depois me ensinou a sentir as sutilezas das brisas invisíveis que mal movimentam o ar e que, dia após dia, depositam folhas na minha sala de estar. A delicadeza do verbo.

Comecei a vir anos atrás, mas a verdade é que só cheguei mesmo foi ontem, vestida de roxo. E cheguei consciente do meu coração disléxico, da memória de gigas insuficientes, da demora do entendimento e da necessidade das palavras-imagens-sons no meu autoensino/aprendizado de viver. É o que faço já.

Agora, sem sonhar com a partida, conserto um cabuloso déficit de atenção que impede meus pensamentos hiperativos de se fixarem nas coisas, de lembrar do importante no meio de toda enxurrada de informações. Expansão. (Re)Conhecimento do movimento das águas, das florestas invisíveis, pântanos drenados, do povo que sou. E das histórias que o vento virado que engoli cochicha nos meus ouvidos, só que ao contrário.

Vim, vi, vivi. No tempo certo estarei em outros lugares e sentirei saudades desses dias abafados, desse ar que lixa as arestas, dessa gente que me ensina tanto. Daqui levarei o silêncio e a paisagem, o primeiro fruto, a espera da chuva, a tarefa completada.

E eu. 


Aberta.


8.8.12

Daquele tempo de menino...

- Por isso que que eu virei drogado, porque queria ser criança pra sempre.
- ...

Ademar

Amanhece nublada a terra do verão eterno, mesmo assim o calor gruda nas dobras do corpo.

Trago na bolsa o sapato com crise de cor.

Digo bom dia e ele demora a responder, como se eu fosse vidro-visagem parada na sua frente, senhor do tempo.

E é no seu tempo que divide rememorações da vida enquanto espero as camadas assentarem. Conta que nasceu em Ouro Branco - Pernambuco, cidadezinha perto de Arco Verde. Já tem 53 anos de Bras-ilha, e no próximo mês volta pra antiga terra pela primeira vez, verificar se ainda tem algum parente vivo. 

Saudade? Sentiu nada. É que perdeu seus pais com 8 anos e aí ficou muito desgostoso da terra, 'o povo gera muita miséria, em época de política, como agora, se vende por um saco de feijão'. Também com 8 anos foi que começou a consertar sapatos, 'profissão de família, até as mulheres aprendem só de ver'.

Aí lembra da juventude, viola na praça. Juntava muita moça bonita, dava até medo!, e sorri malandro e largo sem dentes. Hoje o mundo mudou muito.

Satisfeito com a vida, confessa que já quis até ser rico. 'Achava que ia ser como no Egito', explica e eu sorrio. Mas depois descobriu que tem muitas drogas nesse negócio de riqueza e resolveu seguir por outra trilha.

- Vocês do Mato Grosso, Catarina, falam tão bonito... sotaque né? Eu acho. Não tem como, onde a gente nasce influencia a gente.

Isso mesmo, e a raiz que não se arranca. Papéis, folhas e poeira rodopiam ao nosso redor embalados por súbita e inesperada rajada. Mulheres seguram saias e vestidos, homens protegem os olhos.

- Vento gostoso né?

Eu acho, respondo feliz e um tantico saudosa. E recebo a verdade:

- Me deixa agoniado.



Disfarce

- Pra burro só falta as penas.
- ...

7.8.12

SCS

não consigo
sair destas palavras
setor comercial sul

em que banco eu pago
pra sair do
setor comercial sul

em quantas prestações
eu saio do
setor comercial sul

você quer 30%
do meu salário
pra me livrar do
setor comercial sul?

dois litros do meu sangue
pra me tirar do
setor comercial sul?

pra sair do
setor comercial sul
eu faço qualquer negócio

só não vendo a alma


(Nicolas Behr)

6.8.12

Segundis

No sol já a pino da manhã ele bebe uma cerveja no ponto de ônibus, ri sem dentes, conversa com amigos que mais ninguém vê.

Algumas filosofices respingam, a plateia grava nos celulares e ri junto da loucura da vida.

- Esse doido é muito doido.