Na primeira vez que vim só cheguei até Minas.
Vinha com mais um monte de gente, estudantes com a voz preparada pra lição de protestar nas decisões do país. Mas é terceiro mundo, o dinheiro é ralo e o sol na estrada é quente, e vontades de viver as mudanças nem sempre são forças mais poderosas que ônibus velhos que quebram e se perdem, que nunca chegam ao seu destino. Presos na Fronteira. Daí ficou uma vontade frustrada de nadar no espelho d’água da esplanada, com amigos de moicanos coloridos que conheceria quando chegasse, e uma promessa – com convicção de certeza – de um dia voltar.
Nada se aprende pelo caminho fácil.
Dali passou muito vento e muita água. Promessas e vontades foram esquecidas, morreram, mudaram. Percorri caminhos inteiros só pra me certificar que não levavam a lugar nenhum e só me distanciaram de onde pretendia chegar. Cansada, mas leve, ia voltando trecho andado reparando nos detalhes atenta pra não perder a entrada do portal escondido. E quem procura acha. E a entrada do portal eram quilômetros no deserto até chegar na outra porta, que é outra história.
Então, um outro dia, o destino me sopra mais uma vez pra essas bandas. Vim divida entre a curiosidade e o sofrimento do medo ainda indomado de avião (nunca ninguém pra segurar pela primeira vez a minha mão). Bate e volta. Sabia antecipada que o cronômetro apertado dos compromissos não deixaria espaço pra desbravamentos, mas o tempo bastava pra que olhasse no fundo do olho do pássaro. Olhei, mas só quem viu de verdade foi ele.
De começo a cidade já mostrou seus dentes e mistério em careta-sorriso-careta, seca e agreste, quase rude. Seu ar me esfolou como mil grãos de cacos de vidro invisível. Cansou meus olhos, grudou em minha pele, secou minha garganta e encheu de sertão meu cabelo. Gostei não. Por mim nunca mais nos veríamos: eu sei que você existe e você sabe de mim, nos encaramos desarmadas e cientes, sigamos nossos caminhos e fim.
Voltei pro todo dia de sempre e a esqueci. Sem dor, inclusive, do que ficou sem ver. Passa tempo-estrada-porteira até o momento iluminado em que quase soube com certeza qual seria o próximo passo, desconstruída calculava o que viria. Nesses tempos a cidade cinza se coloriu e me fez feliz. Redonda de tão, acomodada. Então a cidade pássaro chamou 3 vezes pelo meu nome secreto e todas as coisas mudaram de lugar.
Respondi, mas entender mesmo só depois. (E chega algum tempo em que se entende tudo?) Numa noite de terça-feira desembarquei com a vida numa única mala na terra do verão eterno direto pra pensão trash/clandestina achada na internet. No quarto minúsculo e sem janelas o mofo desceu pela parede esmagando minha garganta e peito, sufocando minhas certezas, trote de caloura. Perguntei pra parte de mim que sabe das coisas o que é que eu tava fazendo ali e não ouvi resposta. Que fazer quando a resposta é não ter resposta? Na cama estranha, torta e rangendo, pensei na vida que eu tinha largado e que não já não existia mais pra que pudesse voltar. Precisava mesmo deixar tudo pra trás pelo desconhecido? No meio do deserto senti frio, e a caminhada mal tinha começado.
Depois do cortiço mudei pro apertamento abençoado que me achou e que me faz feliz todos os dias, com rede na sala. Continuei com ritmo de acampamento, espartana, sem tv e sem espelho. E por muito tempo não me reconheci quando vi meu reflexo nas vidraças da vizinhança.
Foi quando me descobri quebrada e retorcida e entendi minha fuga pro planalto central do ser. Demorei, apreciando-entendendo-consertando tudo com cuidado, revivendo um certo jeito antigo de monja. Durante todo o tempo a aridez-sensação-certeza de deserto: o caminho interior que só se faz isolada, o trazer pro real o que já vivera em outras esferas. Tempos depois uma brasiliense me explica, em dia de profecias fartas, que quem encontra o silêncio da cidade o carrega pra onde vai. Que as pessoas que moraram aqui estão impregnadas de um silêncio tão antigo quanto o deserto, mas silêncio rico de imagens coloridas.
Acreditei. Mas só porque também vejo. Os horizontes por todo lado dão a sensação de algo que não termina, o céu toca o chão e a lonjura dos espaços guarda histórias de todos os cantos. O planejamento das coisas. As pessoas observam. E pelo olhar trazem naturalmente essa amplitude pra dentro. Brasília amplia a alma e afina a visão. Desenreda meus sentires e me força a encontrar respostas: decifra-me ou te devoro.
Mil e uma missões, curar a visão distorcida, a antena quebrada. Ver além de política e dinheiro, ver a vida que luta sob o sol. Demora mas chega o dia em que, e um dia não é nunca. Recuperar o que nunca tive: olhar de turista. A alegria absurda e deslumbrada por essa vida quente e pulsante, pelo que se vê e o que se esconde, pelo que se sente e é. Mesmo a feiúra que também existe. Tudo.
Até vencer a maior agonia nesta terra: a quase ausência de vento. Nascida e crescida na cidade dos ventos uivantes, lobos bravos feitos de ar correndo pelo céu das tardes frias, a ausência do barulho ininterrupto me ensurdeceu. Beirando o insuportável. Silêncio. Depois me ensinou a sentir as sutilezas das brisas invisíveis que mal movimentam o ar e que, dia após dia, depositam folhas na minha sala de estar. A delicadeza do verbo.
Comecei a vir anos atrás, mas a verdade é que só cheguei mesmo foi ontem, vestida de roxo. E cheguei consciente do meu coração disléxico, da memória de gigas insuficientes, da demora do entendimento e da necessidade das palavras-imagens-sons no meu autoensino/aprendizado de viver. É o que faço já.
Agora, sem sonhar com a partida, conserto um cabuloso déficit de atenção que impede meus pensamentos hiperativos de se fixarem nas coisas, de lembrar do importante no meio de toda enxurrada de informações. Expansão. (Re)Conhecimento do movimento das águas, das florestas invisíveis, pântanos drenados, do povo que sou. E das histórias que o vento virado que engoli cochicha nos meus ouvidos, só que ao contrário.
Vim, vi, vivi. No tempo certo estarei em outros lugares e sentirei saudades desses dias abafados, desse ar que lixa as arestas, dessa gente que me ensina tanto. Daqui levarei o silêncio e a paisagem, o primeiro fruto, a espera da chuva, a tarefa completada.
E eu.
Aberta.